Na charmosa vila francesa de Beaune, cidade com cerca de 22 mil habitantes, há algo quase sagrado ao degustar um vinho, como se por um instante o mundo lá fora se calasse para que as maiores expressões de Chardonnay e Pinot Noir se manifestem e sejam reverenciadas. Produzir vinho é a razão de ser de Beaune, onde infinitos horizontes de vinhas invadem os domínios da cidade, seduzindo os olhos e convidando o paladar a apreciar algumas das garrafas mais caras e procuradas do mundo. Não por acaso, Beaune é o coração do comércio de vinhos e do turismo da Borgonha, atraindo milhões de aficionados, connoisseurs e compradores cujo apetite é feroz e - quase - sem limites.

Por mais surpreendente que pareça, a força motriz por trás desse próspero mercado é um hospital centenário, sem fins lucrativos, que produz e vende seu próprio vinho como meio de sobrevivência. Construído em 1443, durante a regência do duque Phillippe Le Bon (como o nome sugere: um homem muito generoso!), o aclamado Hospices de Beaune nasceu para cuidar de doentes e desabrigados (na época, a França enfrentava epidemias, assolada pela praga e por fome, consequência da Guerra dos Cem Anos). Graças aos benfeitores que ao longo dos anos doaram lotes de vinhas como gesto de agradecimento, a instituição não parou de florescer.

O Hospices também revela algo ainda mais incomum. Pela primeira vez em sua história, uma mulher comanda o trabalho nas vinhas do hospital, que por sua vez abrangem uma área de 60 hectares espalhados pelas propriedades mais nobres da Borgonha. Desde 2015, a enóloga Ludivine Griveau se destaca pela sua gestão firme, mas com leveza, em um ambiente predominantemente masculino. Vale ressaltar que sua admirável condução favorece uma produção sustentável segundo os métodos da viticultura orgânica.

Mas isso não é tudo. Centenas de barris da última safra dos 50 cuvées do Hospices são leiloados no que é conhecido como o ápice do calendário mundial de leilões de vinhos: no terceiro final de semana de novembro, compradores e colecionadores particulares se reúnem em torno de uma grande causa, em posse de uma vontade genuína e, abundamente, de apoiar, dar lances e beber. Para os verdadeiros amantes de vinho, a experiência é memorável!

Após hiato de um ano devido às restrições do Corona, o famoso leilão de vinhos do Hospices de Beaune voltou ao formato presencial em 21 de novembro de 2021. Tive a sorte de testemunhar não apenas a venda eletrizante conduzida pela Sotheby's - seguida de um inesquecível jantar à luz de velas no ilustre Hôtel Dieu - como também, e ainda mais relevante, pela oportunidade de acompanhar um notável comprador: Alaor Lino, embaixador dos vinhos da Borgonha no Brasil, é o comprador número 01 fora da França. Ele conquistou laços fortes com o reinado do Hospices, onde o dinheiro não é necessariamente o que fala mais alto: a forma com a qual o nome imaculado da instituição será transmitida também conta em igual medida.

Por meio de uma franquia da importadora francesa Anima Vinum, Alaor se tornou referência em seu país quando o assunto é vinhos da Borgonha. Sua loja, em São Paulo, é o único lugar no mundo que exibe a coleção com todas as cuvées do Hospices de Beaune curada em um gracioso mini-museu. Que tal um vinho que leva seu nome? Bem, este é um de seus atributos especiais: como um serviço sob medida, os clientes podem personalizar o rótulo mítico com seu nome impresso nela como se fosse um comprador no leilão. Tal alfaiataria pode ter um preço - que varia de colheita a cuvée e exige uma compra mínima de 12 garrafas - mas, convenhamos, é a máxima expressão de um verdadeiro presente solidário!

A complexidade e a singularidade do que a Borgonha oferece são ingredientes vitais que devem ser compreendidos e divulgados com cuidado e respeito. Junto ao seu sócio, Jean-François Vandroux, Alaor Lino preserva uma relação estreita com dezenas de vinhedos, certificando-se de que a filosofia pela qual os viticultores dirigem suas terras é a mesma com a qual eles conduzem seus negócios.

No portfólio da Anima Vinum só há espaço para o vin du vigneron, ou seja, produzido por verdadeiros artesãos que dedicam todo o seu ser a essas terras: pessoas talentosas e com profunda ligação ao território, preservando pequenas produções por meio de práticas agrícolas que respeitam a saúde das vinhas e dos vinhedos. Em um mundo caótico, dominado pelo distanciamento social, cifras e performances, soa como um raio de esperança encontrar visões como esta que refletem as necessidades mutantes da humanidade, a qual clama por uma abordagem mais pessoal em relação ao consumo e aos relacionamentos.

Talvez seja por isso que Alaor naturalmente deixa transparecer o chamado joie de vivre: seu entusiasmo e vigor são tão palpáveis quanto seu carisma; além disso, não poderia haver melhor guia para minha curiosidade onívora e novata do que ele. Durante nossa jornada em Beaune, aprendi com Alaor que Saint-Aubin, Blagny, Puligny-Montrachet e Chassagne-Montrachet não são apenas regiões vinícolas, mas OS TERRITÓRIOS de excelência de onde vêm os vinhos brancos mais caros e cobiçados do mundo. Este sublime tetrágono é carinhosamente chamado por ele de "Carré magique", numa expressão que faz jus à sua magnitude: é o metro quadrado de vinho mais valorizado que existe!

Você pode se surpreender ao saber que um único hectare de um vinhedo de Montrachet vale mais de 50 milhões de Euros, fazendo com que este pedaço de terra seja considerado o melhor Chardonnay do mundo! Em outras palavras, um kilograma de uvas Le Montrachet custa cerca de 200 Euros. É o branco seco mais caro do mundo e, quem tiver a sorte de saboreá-lo, nunca esquecerá sua persistência extraordinária e seu caráter etéreo: se há um último vinho para beber antes de morrer, provavelmente eu escolheria este.

A Borgonha é o berço da palavra francesa terroir que descreve a incrível alquimia entre clima e solo que, por sua vez, influencia enormemente na qualidade dos vinhos. O conceito de terroir é o cerne desta região vitivinícola, onde o solo dá nome ao vinho (diferentemente, por exemplo, de outras regiões, como a Alsácia, para a qual se nomeia a casta ou Bordeaux, a quinta).

No entanto, para começar a imaginar o que realmente está por trás dessas características únicas, vale a pena mencionar os solos jurássicos da Borgonha. Sua origem se dá há quase 200 milhões de anos, formados por muitos movimentos geológicos que resultaram em milhares de parcelas que apresentam a mistura perfeita de argila e calcário. Esses solos determinam os sabores e aromas dos vinhos: imagine o mais aveludado com notas minerais poderosas no palato.

Só mais uma rápida volta ao passado nos leva aos tempos medievais, quando os monges locais cistercienses habilmente dividiram os vinhedos da Borgonha em parcelas, dando a essas terras um sistema de classificação que prevalece até hoje. Explicando de outro modo, a Borgonha pode ter seu próprio terroir que difere de outras regiões, mas dentro da própria região também existem muitas outras variações: as colinas, os vales, as encostas, o solo, o clima, a exposição solar, e por aí vai... é realmente um mosaico!

A geografia única da Borgonha desempenha um papel vital na qualidade dos seus vinhos, mas isso não significa que o terroir se limite a solos excepcionais e a um clima abençoado, visto que o cultivo das uvas é considerado um fator fundamental. Os viticultores usam diferentes técnicas, tornando o elemento humano igualmente essencial para a elaboração desses vinhos de excelência mundial. Ou seja, o vin du vigneron se manifesta como uma simbiose, provando que a relação eterna entre as mãos dos homens e as vinhas da Borgonha é tão intrínseca a ponto de uma jamais ousar prosperar sem a outra.

Mesmo se você não for amante do vinho, considere visitar Beaune. Toda a atmosfera desta cidadezinha é encantadora e feita na medida certa. Afinal, a meca do vinho nunca decepcionaria seus visitantes no que diz respeito à hospitalidade. Aqui está um guia amigável para ajudá-lo a navegar pelos encantos da capital da Borgonha.

Musée Hospices de Beaune: hoje em dia, o hospital de caridade fica numa moderna sede nos arredores da cidade, enquanto as antigas instalações - no icônico Hôtel Dieu, no centro histórico - dão vida a um belo museu considerado visita obrigatória em Beaune. Este é um dos edifícios renascentistas mais magníficos da Europa, cuja atraente arquitetura é impressionante por si só: imagine um estilo gótico exuberante com telhados de telhas vitrificadas da Borgonha. Uma vez lá dentro, os visitantes se surpreendem ao se depararem com as camas do hospital em um salão suntuoso - os últimos pacientes foram internados na década de 1970 - instalado em um prédio que mais parece uma imponente catedral. Em tempo: um dos pontos mais altos - além da arquitetura - é a antiga farmácia que preserva um ambiente a la boticário vintage: armários de madeira cheios de pequenos frascos de elixir alaranjados lembram a época em que as grandes indústrias farmacêuticas ainda não governavam a saúde pública.

Park Bouzaize: um adorável pequeno parque do tamanho perfeito para um belo passeio em dias de sol (abundantes nesta região) ou mesmo para um piquenique aos finais de semana. Gosta de passear nos vinhedos? Voilà: os arredores do parque estão repletos de vinhas que podem ser exploradas e, porque não, usadas como pano de fundo para uma degustação de vinhos enquanto se relaxa no próprio terroir que lhe deu vida.

Château de Cîteaux: sempre que eu acordava, minha mente tentava congelar aquele momento para sempre. As instalações do hotel são rodeadas por um mar de vinhas que são justamente a primeira paisagem vista da janela do quarto durante aquelas manhãs geladas de novembro. Encantador em igual medida é o Spa, assim como seus amenities. A propósito: esteja ciente de que a localização do hotel fica a 15 minutos do centro da cidade, portanto, um carro é muito útil basicamente o tempo todo.

Boisrouge: escondido entre Beaune e Dijon, este misto de restaurante com hospedaria representa o verdadeiro significado do que deve ser um luxo discreto na indústria da hospitalidade. Aqui, os hóspedes podem sentir-se realmente em sintonia com a natureza e, ao mesmo tempo, nutrirem-se e revitalizarem-se no meio de um ambiente verde. Extensa opção de vinhos também é cuidadosamente selecionada para harmonizar com a comida fresca e sazonal de dar água na boca.

Ma Cuisine: um belo exemplo daquilo que mais aprecio em bistrôs: carácter despretensioso e acolhedor localizado no coração do centro da cidade. Nem é preciso dizer que a comida é deliciosa, mas, na minha opinião, o que mais se destaca é a extensa carta de vinhos biblicamente dedicada ao créme de la créme dos rótulos mais soberbos que existem no mundo.

La Goutte d'Or: um restaurante familiar que define o padrão de cozinha requintada. A atmosfera pode ser simples e descontraída, mas os ingredientes e sabores são elevados à máxima potência. Para vegetarianos - como eu - comer na França é bastante desafiador: de 10 pratos, provavelmente 9 são dedicados a opções com proteína animal. Mas este local provou que o chef tem criatividade e talento suficientes para inventar receitas onde os vegetais podem ser a estrela do menu. Amantes de carne, não se preocupem: soube que eles fazem um dos melhores escargots da região.

Fabrice Gillotte: quando um artesão é descrito como o "Meilleur Ouvrier de France", pode-se imaginar que suas criações não seriam menos do que verdadeiros tesouros da confeitaria. Eleito o melhor chocolatier do país, Fabrice domina com perfeição a arte de fazer chocolate. Prepare-se para se entregar a aromas inebriantes e sabores exuberantes. Além dos chocolates artesanais, os visitantes podem escolher entre macarons e biscoitos.

Alain Hess: as prateleiras estão sempre amontoadas com o melhor de queijos, charcutaria, vinho e um pouco mais... O nome na fachada "Épicerie fine | Cave à vins" imediatamente define o cenário: a loja recebe os clientes com uma variedade de produtos franceses de alta qualidade (incluindo a famosa Fleur de Sel de Guérande e a mostarda de Dijon). Não se esqueça de levar para casa um generoso pedaço do queijo local ao estilo Comté: é absolutamente divino!

Guia turístico: a orientação experiente e agradabilíssima da brasileira Juliana @vempraborgonha, que também é uma jovem conhecedora de vinhos, pode certamente tornar sua viagem muito mais valiosa. Recomendo essa guia fortemente para acompanhar quem está em busca de um tempo de qualidade personalizado na Borgonha.

Santé!