Corrente quebrada

August 17, 2022

“Tomara que não roubem”, disse meu marido enquanto olhava pela janela para o suporte de celular da nossa scooter novinha em folha. Curiosamente esta prece tem sido o nosso lema nas últimas semanas.

Você pode se surpreender ao descobrir sobre um outro lado de Florença. Diferente do que muitos pensam, o berço do Renascimento italiano - este museu a céu aberto onde realeza, artes plásticas e beleza estética hipnotizam nossos sentidos - tem, infelizmente, pequenas zonas sombrias onde os pertences pessoais – especificamente relacionados aos meios de transporte – são alvo fácil.

Garanto que isso não é paranóia tanto quanto asseguro que Florença não é uma cidade violenta, de forma alguma. Além disso, nasci e cresci no Brasil, onde a criminalidade não é brincadeira e nem mesmo comparável aos ambientes europeus. Apesar das coisas aqui serem bem menos assustadoras, com certeza deixam uma insegurança no ar.

Acho que tudo começou meses atrás, quando eu costumava estacionar minha amada bicicleta azul em uma pracinha em frente ao meu apartamento. Minha azulzinha bebê era pesada demais para ser carregada pelas escadas, então eu costumava deixá-la lá fora. Não havia um dia em que eu não me surpreendesse com todo tipo de lixo jogado em seu cesto, desde cascas de banana, latas de cerveja até lenços de papel sujos. Às vezes o selim era removido e eu o encontrava na bicicleta de outra pessoa. Sério?! Sim, pasmem!

Bem, muitas coisas estranhas aconteciam constantemente. Até o dia em que ela não só virou um depósito de lixo, mas os pneus foram completamente destruídos. Eu disse “basta!”. Depois de gastar 70 euros para consertá-los, decidi trazer minha companheira pra casa e mantê-la segura. Até o dia em que não estava mais.

Em uma manhã ensolarada de sexta-feira, fui nadar no Le Pavoniere, uma piscina pública no coração do Parco delle Cascine, um antigo e querido parque florentino que, infelizmente, vem enfrentando sérias turbulências. Eu travei e prendi a bicicleta nas barras de estacionamento em frente ao local. Menos de três horas depois, ela se foi. Por cinco anos tive essa bicicleta: entregue da Califórnia para o Brasil, onde a comprei, depois cuidadosamente levada de avião para Amsterdã onde, por dois anos, compartilhamos belas experiências para finalmente ser transportada em um caminhão de mudança para Florença.

Chorei um rio; fiquei devastada; não podia acreditar que alguém pudesse realmente quebrar o cadeado em plena luz do dia em uma área tão movimentada. Então percebi que se você ainda não teve sua bicicleta roubada você ainda não faz parte das estatísticas. Acredite ou não, existem várias comunidades no Facebook, como Bici rubate a Firenze (“Bicicletas roubadas em Florença”), onde se encontra todos os tipos de lamentações. De todas as condolências que recebi online, uma mais direta veio assim: “Apenas esqueça, agora ela pertence a Firenze”. Mesmo o policial a quem apresentei e registrou minha queixa lamentou: “Mi dispiace tantissimo, mas este é um incidente recorrente em Firenze quindi 98% de chances de você nunca recuperar sua bicicleta”.

Infelizmente, há um grande mercado sujo na imaculada capital da Toscana onde o contrabando de bicicletas é corriqueiro: de 10 moradores com quem conversei, pelo menos 11 deles tiveram suas bicicletas roubadas! A maioria deles duas vezes. Mesmo a polícia não pode deixar de externar falta de esperança. Ou devo dizer displicência?

Seria injusto apontar Florença como o inferno exclusivo das bicicletas roubadas. Veja Amsterdã, por exemplo, onde andar de bike é um estilo de vida e de 50.000 a 80.000 bicicletas são roubadas anualmente. Mesmo assim, para uma cidade como Florença – três vezes menor que a capital holandesa e onde os carros são imperativos – é surpreendente saber que pelo menos 20.000 bicicletas são tiradas de seus proprietários todos os anos.

Confesso que tudo isso me chocou. Talvez eu tenha sido muito ingênua imaginando uma Florença intocável, idealizando uma cidade civilizada que não existe em lugar nenhum. Bem, eu me pergunto se talvez na Finlândia ou no Japão haja um lugar onde o sistema não esteja tão quebrado?

No entanto, enquanto a maneira mais fácil for fechar os olhos à desigualdade social e econômica, agravada pela pobreza e pela corrupção (o que será de nós após as eleições na Itália e no Brasil, aliás?!), não vejo saída para tudo isso. Por enquanto, vamos torcer para que os responsáveis pelas engrenagens da cidade passem a dar mais atenção a algo que, a longo prazo, pode estragar o fascínio de um lugar tão glamuroso como a bela Firenze. Tomara que não.

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